True Detective  feminista: as Mulheres Noir da HBO

True Detective: Terra Noturna (Night Country) é a quarta temporada de True Detective, antologia estadunidense de drama policial criada por Nic Pizzolatto, e que nesta edição, lançada em 14 de janeiro de 2024, na HBO, foi dirigida e produzida pela diretora mexicana Issa López. Aqui, nesta terra inóspita, na cidade imaginária de Ennis, no Alasca – a série foi filmada, todavia, na Islândia – as detetives Liz Danvers (Jodie Foster) e Evangeline Navarro (Kali Reis) interpretam as duas policiais que precisam investigar o caso de um grupo de cientistas misteriosamente desaparecidos e, provavelmente, assassinados. Elas se separaram por conta de dois feminicídios ocorridos no passado, e não resolvidos, e voltam a formar uma dupla para investigar o caso. Para completar, Terra Noturna conta ainda com a expressiva Fiona Shaw, no papel de Rose Aguineau, uma professora que abandona tudo por um grande amor, e o enigmático John Hawkes, como o Capitão Hank Prior, personagem que vai crescendo a cada novo episódio. Parceiro de Danvers e Navarro, o jovem ator Finn Bennett é Peter Prior, assistente de Danvers, filho de Hank, representando o novo masculino que emerge buscando diferenciar-se das tradições patriarcais locais, mas tem dificuldade de conciliar sua vocação profissional com o casamento.

Ao colocar em papeis protagonistas duas mulheres que são bastante diferentes, as cenas de crime se deslocam com facilidade da delegacia para a conflituosa vida doméstica, e com isso vai revelando as implicações dos próprios cidadãos locais com o crime organizado. As maiores vítimas são sem dúvida os habitantes de Ennis, em sua maioria composta por descendentes povos originários, proletarizados por empresários inescrupulosos, literalmente invadidos pelo homem branco, pela tecnologia e pela indústria tóxica e desumana da mineração. O fantástico aqui ecoa como o maravilhoso no conceito de Todorov. Há algo de poético na forma como muitos personagens optam por mergulhar no oceano gelado da Terra Noturna para escapar ao sofrimento e ao apagamento de sua identidade.

Há cenas de partos assistidos pela comunidade, enfermeiras, crianças miscigenadas, mulheres fortes e padrões de beleza distantes de semanários como Vogue. Em meio a esse turbilhão de estímulos extraordinários, Foster-Denvers ostenta suas rugas e sua sexualidade com muito orgulho e dignidade. Há diálogos inesquecíveis entre ela e Navarro sobre Tinder, homens, amor, que exalam uma sororidade feminina e, sim, feminista. A atriz Kali Reis vem dos ringues, é ex-campeã mundial em duas categorias de peso (médio e leve), e embora não seja uma estreante, dá um vigor a sua personagem que é raro de se ver. Sua aspereza combina momentos de ternura e amor filial, e muita tensão, pois atriz e personagem são ambas de origem latina e indígena. Foster compõe sua detetive com total domínio de cena, a mulher branca, celibatária e independente, e bastante solitária, enfrentando os preconceitos da cidadezinha. Trata-se de uma personagem complexa, em busca do equilíbrio entre ser a mulher sexuada, que cuida ainda da enteada adolescente, a rebelde ativista Leah (Isabella LaBlanc), e a policial que tem de provar o tempo todo que é capaz de estar ali no comando, um sentimento que toda profissional conhece, mas que é mais comum numa profissão considerada de risco e essencialmente masculina.

Todas as mulheres da série, de todas as idades, se entregam às suas paixões com orgulho e coragem, ainda que tenham de enfrentar para isso um ambiente violento e pouco acolhedor. Segundo dados da própria HBO, Terra Noturna já se tornou a mais assistida entre as temporadas da série antológica da HBO, ao menos no streaming. Teoricamente, a temporada 4 se articula com a primeira temporada da icônica série, que sempre mesclou a narrativa fantástica à criminal. Na primeira temporada, Rust Cohle (Matthew McCon aughey) e Marty Hart (Woody Harrelson) são dois detetives em busca de um assassino em série na Louisiana, o estado mais embruxado dos Estados Unidos. Travis Cohle (Erling Eliasson), o amor de Fiona Shaw, tem o mesmo sobrenome que Rust. Há bonecas de sacrifício, espirais tatuadas em corpos. O laboratório de pesquisa que é o cerne da investigação de Danvers é mantido pela famosa empresa Tuttle United, que surge na primeira temporada, e que curiosamente parece envolvida com todas os problemas ambientais da cidade, causados pela companhia mineradora. Dia 18, domingo, vai ser exibido o último episódio da temporada, que dificilmente conseguirá resolver todas as lacunas deixadas ao longo do caminho. A riqueza dos elementos inseridos em cena é talvez o maior pecado do roteiro. Vai ser difícil de se despedir da trama sem um pouco de frustração. Mas o mistério nem sempre é esclarecido nas temporadas anteriores.

Esse é o maior traço noir da série, desde o seu início. As narrativas noir eram sempre mais focadas nas relações de conflito que se estabeleciam entre os personagens, e nas questões sociais, do que na solução do enigma. As mulheres aqui, entretanto, driblam completamente o conceito de femme fatale, para se apoderar da função do protagonista masculino, invariavelmente um detetive que rejeitava sempre seu papel na hierarquia da organização patriarcal para enfrentar o desconhecido.  

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