Entrevista com Fernando Mascarello

Fernando Mascarello é pesquisador, professor e autor na área de Cinema desde o final da década de 1990. Entre 2006 e 2008, organizou os livros História do Cinema Mundial (em 7a. edição) e Cinema Mundial Contemporâneo. Eles foram resultado da rede de trocas proporcionada pela SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual), de cujo Conselho Deliberativo foi membro entre 2000 e 2011. O foco de pesquisa em Teoria do Cinema, com ênfase sobre as teorias da espectatorialidade e da recepção cinematográficas, despertou seu interesse pela Psicanálise. 

  1. Como surge o seu interesse pela obra de David Cronenberg?

FM – Meu primeiro contato com a obra de Cronenberg, na juventude, foi no princípio dos anos 1990, por meio de Mistérios e paixões, a adaptação criativa do Almoço nu de William Burroughs. Fui tomado por um arrebatamento que logo se consolidaria com M. Butterfly e Gêmeos: Mórbida Semelhança (reexibido frequentemente nos cinemas por essa época) e logo a seguir com Crash, em meados dos 1990. Nesse momento, minha geração, já amplamente “formada” cinefilicamente graças às retrospectivas de cinemas do circuito alternativo “de calçada”, pode usufruir do que provavelmente foi o ápice criativo do cineasta, em sua recente passagem desde o body horror “de gênero” ao body horror “de arte”. 

Ao final dos 1990, quando ingressei no mestrado em Comunicação, já pesquisando em teoria do cinema, o fascínio cinéfilo pelos filmes de Cronenberg se manteve fortíssimo. A sua obra, juntamente com a de David Lynch (aparentadas pela via do neonoir) e com a própria cinematografia noir e neonoir, sempre fizeram parte do cinema que mais me convocou. Posteriormente, nos anos 2000, um de meus focos de pesquisa veio a ser precisamente o noir e o neonoir, pela ótica da sexualidade ou do embate entre homens e mulheres ali tematizado. Aliás, foi isso, destacadamente, que me levaria ao interesse pelos estudos dos homens e das masculinidades, queer e feministas.

  1. O fato de Cronenberg ser branco, heterossexual, repercute de alguma forma em seu trabalho sobre o cineasta?

FM- Certamente. Mas antes de responder mais diretamente, penso que um primeiro ponto a considerar é que, à época, início dos 1990, havia poucas referências cinematográficas para além do branco hétero, salvo exceções como Pasolini, é claro, ou Neil Jordan e Derek Jarman. Não lembro de Gregg Araki, por exemplo, ter sido exibido por esses anos em Porto Alegre, onde sempre vivi. E isso conduz a outra reflexão. Hoje, me arriscaria a sugerir, em retrospectiva, que Cronenberg pode ser tomado como um participante periférico (e mais velho, como Alain Resnais no caso da Nouvelle Vague) muito relevante do New Queer Cinema que se inaugurava por então, justamente com esses cineastas em início de carreira que mencionei. Embora a construção da ideia de um New Queer Cinema pela crítica jornalística e, depois, nos primeiros trabalhos historiográficos na década de 2000, não costumem incluir a filmografia de Cronenberg nesse universo cinematográfico, parece-me que hoje em dia é relativamente consensual que seu cinema é essencialmente queer. Ainda que isso se efetive desde um ponto de vista lateral e, sim, assumidamente heterossexual – inclusive, por vezes, sua obra sendo objeto de desconfiança, como foi o caso com seus filmes body horror dos anos 1970, bastante mal-vistos por boa parte da crítica acadêmica feminista anglo-estadunidense dos anos 1980.

Mas, voltando mais focadamente à pergunta, é certo que sim. O fato de Cronenberg comentar em suas entrevistas que seus filmes se originam das fantasias de um homem heterossexual, branco, como é seu caso, sem dúvida configura mais um ponto identificatório para mim, como espectador-cinéfilo e como pesquisador. Ou seja, trata-se de um homem hétero que elabora através de seus filmes suas próprias fantasias e questões existenciais mais caras, com destaque para as relativas à sexualidade – entre tantas outras, entrelaçadas, que tão produtivamente o “acometem” –, fantasias e questões que revelam um potencial desestabilizador incrivelmente profícuo com respeito à heteronormatividade e aos modos convencionais e hegemônicos (em crise) de ser homem no Ocidente contemporâneo. É verdade, ao mesmo tempo, que a teoria queer – e a própria psicanálise desde o trabalho de Laplanche e Pontalis, nos anos 1960, sobre a fantasia – assinala a polivalência, fluidez e multiplicidade de nossas possibilidades de identificação com artistas, personas de atrizes ou atores, personagens etc., o que vem iluminar teoricamente a nossa disponibilidade, como cinéfilos ou pesquisadores, de nos identificarmos com artistas das mais diferentes identidades sexuais, étnicas, de gênero, classe etc. Mas isso não invalida a potência de nossas possibilidades identificatórias com cineastas que percebemos mais próximos de nosso próprio lugar de fala – no caso de Cronenberg, um lugar hétero-queer, para usar o conceito proposto pelo antropólogo estadunidense Robert Heasley.

P – O seu interesse pela psicanálise levou-o a realizar um mestrado em Psicanálise, mesmo após ter consolidado uma carreira como pesquisador de Cinema na área acadêmica, ou foi o interesse pelo cinema? 

FM – Foi o interesse pela psicanálise, em conjunto com aquele pelo grande campo dos estudos de gêneros e sexualidade. Em meu mestrado e doutorado e no começo de minha carreira com pesquisador de cinema, grande parte de meus esforços se direcionou para o tema da espectatorialidade e da recepção cinematográficas, e essa área da teoria do cinema, desde seu começo ao final dos anos 1960, sempre foi maciçamente informada pela psicanálise freudo-lacaniana – o que me proporcionou um primeiro contato já relativamente substancial. Mas foi mais tarde, quando passei a me aprofundar sobre a temática das masculinidades heterossexuais dissidentes, que me vi compelido a buscar conhecimentos mais robustos em psicanálise, a fim de compreender aspectos cruciais – os psíquicos – da constituição da identidade e do desejo dos sujeitos homens.

Aliás, vale comentar, de passagem, que a interface entre os estudos de gênero e sexualidade e a psicanálise tem sido muito mais fértil no mundo anglógono que no Brasil, onde, desafortunadamente, o tom em geral é dado por boa dose de desconfiança de parte a parte. Mas teóricos queer clássicos como Leo Bersani, Kaja Silvermann, Lee Edelman e a própria Judith Butler sempre promoveram um diálogo muito produtivo entre as duas áreas – Butler, equivocadamente, tende inclusive a ser vista mais como crítica da psicanálise, no Brasil, do que como teórica que fez avançar o pensamento psicanalítico no sentido da revisão de seus vícios patriarcais e falocêntricos.

Voltando ao meu percurso pessoal, tendo percebido que desejava expandir meus conhecimentos em psicanálise, decidi renunciar à via mais frequente do pós-doutoramento (que vem sempre associada a funções docentes) e optei por retornar como aluno a um mestrado. Esta era a condição que desejava ocupar numa área onde, até então, detinha apenas conhecimentos muito específicos, vinculados à área da teoria cinema. Permiti-me então – não sem ansiedades e dificuldades no trajeto –experimentar o árduo desafio representado pelo estudo e preparação para a seleção de mestrado, além da a aventura de construir uma nova rede com candidatos a mestrado e mestrandos, a maioria bem mais jovens. Isso tudo terminou por agregar uma vivência incrivelmente rica – diria mesmo essencial – ao meu percurso tanto sob o aspecto acadêmico (de apropriação conceitual) quanto pessoal (de sociabilização e identificação com esses novos parceiros de percurso).

P – Você assume no seu trabalho uma atitude teórica antipatriarcal, pró-feminista e pós-heteronormativa e cita os estudos de Facundo Blestcher e Barbara Creed. Qual a importância desses temas para a contemporaneidade e dos estudos psicanalíticos para a análise fílmica?

FM – O psicanalista argentino Facundo Blestcher é um exemplo, juntamente com o francês Thamy Ayouch e, no Brasil, autores como Eduardo Leal Cunha, Marcia Arán, Felippe Lattanzio, Pedro Ambra e Patricia Porchat, de teóricos que procuram repensar a psicanálise a partir de um diálogo mais receptivo como os estudos de gênero. Há algumas diferenças internas entre esses vários autores – como uma grande controvérsia a respeito de uma suposta virada não falocêntrica no ensino lacaniano dos anos 1970 –, mas, de modo geral, eles são pautados por um esforço de revisão dos pensamentos mais nitidamente falocêntricos do Freud dos anos 1920 e 1930 e do Lacan de pelo menos até o começo dos 1970. Isso implica uma determinação seja para historicizar a equação entre pênis e falo, desuniversalizando-a; seja, em visadas complementares e mais contundentes (também, a meu ver, muito necessárias), para relativizar o falo como significante primeiro (cf. a formulação lacaniana), propondo, em lugar disso, uma positivação da feminilidade. Entre outras possibilidades, essa positivação pode ser alcançada retirando a feminilidade do lugar de inveja do pênis e do “ser o falo ao invés de tê-lo”, ou, ainda, reconhecendo a sua condição fundante na psicossexualidade tanto de homens quanto de mulheres, cis ou trans.

A importância dessa revisão, expansão e atualização da psicanálise é enorme tanto para o campo da análise cultural e política em geral, quanto para a teoria do cinema e a análise fílmica. Isso porque a psicanálise, a despeito de todos os seus vícios históricos, denunciados desde os anos 1920 pelas primeiras psicanalistas mulheres, passando pelas feministas psicanalistas dos 1960 e 1970 como Luce Irigaray e Helène Cixous e chegando aos estudos queer e feministas contemporâneos, permanece sendo a ferramenta mais adequada para a compreensão dos determinantes psíquicos envolvidos na constituição dos desejos e das identidades. 

Esse caráter indispensável da psicanálise pode ser observado no seu próprio destino no interior dos estudos de cinema internacionalmente. Depois de ter sido elemento fundamental do paradigma semio-lacano-althusseriano que predominou na teoria do cinema dos anos 1970, ela recebeu uma necessária, dura mas breve crítica advinda da teorização vinculada aos Estudos Culturais típica dos 1980. A partir da década de 1990, no entanto, em versões mais complexas, fluidas e heterogeneizantes que as do paradigma “mulveyano” dos anos 1970 (referência ao texto clássico da teoria feminista psicanalítica de Laura Mulvey, Prazer visual e cinema narrativo, de 1975), ela voltou a fundamentar um sem número de formulações teóricas e esforços analíticos em cinema, de mãos com os mais diversos campos, como os dos estudos de gênero e sexualidade e raciais. 

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