Antes dela, Renato Tapajós dedicou um documentário sobre a batalha com o mesmo título, A Batalha da Maria Antônia, lançado em 2013. Enquanto Tapajós estava interessado em compreender como o episódio contribuiu para moldar o presente, Egito faz uma autêntica imersão nos acontecimentos da época, o maior trunfo de seu trabalho. O filme de Egito ganhou o Festival do Rio, e o respeito da crítica, mas a grande ênfase nas resenhas é em geral referente aos 21 planos-sequência, que surgem enumerados na tela, e que permitem ao espectador mergulhar com a diretora e seu elenco nos acontecimentos trepidantes da época, remetendo a um paralelo incômodo com o Brasil de hoje. Esse é sem dúvida o maior mérito da diretora, a releitura daqueles momentos, com a criação de personagens como o professor dedo-duro Antônio (Phillip Lavra), colaborador da ditadura militar, Lilian (Pamela Germano) a garota apaixonada que entra na história por amor, mas assume as consequências –, a militante engajada e protagonista Angela (Isamara Castilho), a ativista experiente Maria Elena (Julianna Gerais), a professora totalmente despolitizada, mas humanista Leda (Gabriela Carneiro da Cunha), o líder estudantil inseguro Benjamin (Caio Horowicz). Não, nem todos os ativistas eram criaturas que emergiam das células comunistas, como fez crer a ditadura. Embora os grupos organizados estivessem presentes e tenham contribuído para organizar a revolta, foi sem dúvida a barbárie perpetrada pelos governantes que contribuiu para conscientizar muitas almas sensíveis para a oposição. E embora reconheça a importância dos movimentos e de suas lideranças, a visão crítica do machismo ainda hoje predominante nos grupos e movimentos políticos dá o tom ao filme.
Na batalha de Egito, e isso faz muita diferença, os protagonistas não são as lideranças estudantis masculinas, e sim as mulheres. Os homens têm um papel secundário, e são movidos por elas em muitas cenas. No filme, o movimento secundarista, baseado na escola pública Marina Cintra, próxima do Mackenzie e da FFCLH acaba atuando como frente e sai às ruas para enfrentar a direita enfurecida e “proteger” as lideranças, que no filme é vivida por um único personagem, fictício – José Dirceu foi uma das lideranças. Professores famosos como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o crítico literário Antonio Candido e o economista Paul Singer davam aulas no prédio, mas Egito joga seus holofotes sobre uma professora, totalmente despreparada e ingênua, um símbolo da atitude da classe média diante das atrocidades do regime. O protagonismo do filme de Egito recai, naturalmente, sobre essas personagens secundárias na vida real, que frequentemente eram borradas dos relatos, mas se viam na condição de mensageiras e “mão-de-obra” barata dos grupos.
O filme é em branco e preto, uma referência cinematográfica ao passado e aos documentários, mas em nenhum momento se apoia em imagens anteriores de arquivo para narrar os acontecimentos, outro mérito. Afinal, após tantos anos, rever imagens de arquivos não iria acrescentar muito ao que já se sabe. Adotar uma postura diante dos fatos é essencial para dar alma a um filme, e a diretora não desperdiça essa oportunidade. Quem assistir vai ser efetivamente transportado para o clima tenso que se vivia naqueles anos, e que prosseguiria pela década de 1970 ainda, os piores anos da repressão. Os confrontos foram muitos, e o filme de Egito se detém no mais violento deles, e cria um thriller convincente de 84 minutos – a montagem é de Julia Zackia -, sob o embalo de rojões e coquetéis Molotov, e recria fatos que foram usados como justificativa para promulgar o famigerado AI-5. O Mackenzie continua na mesma rua, mas o prédio da FFCLH hoje abriga o Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP) e um centro cultural, exatamente para atenuar prováveis embates e desagregar o movimento estudantil. As manifestações de ultradireita voltaram com toda força no governo Bolsonaro. E filmes como os de Vera Egito nos fazem refletir sobre esse passado que se debruça sobre o presente.
Imagens: Manoela Estellita e Rafael Barion