Elianne Ivo Barroso é professora associada do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF) onde é responsável pela disciplina de Montagem do Bacharelado de Cinema e Audiovisual. Atua como docente dos programas de Pós-Graduação em Cinema (PPGCINE) da UFF e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGMC/UFRJ). No momento, desenvolve pesquisa sobre os montadores brasileiros, buscando identificar características e estilos dos profissionais da edição, tema da entrevista abaixo.
P- Você tem se dedicado a pesquisar a montagem no cinema brasileiro. Como você vê esse campo de estudos no Brasil, e no mundo?
R- Os estudos de montagem ocuparam papel importante na prática e na pesquisa acadêmica de cinema. Com a chegada do digital, houve uma certa desconfiança com o que aconteceria com a montagem já que a sua prática foi bastante alterada em virtude da virtualização do trabalho e o gradativo abandono da Moviola em que se montava película. Alguns autores foram levados a adensar o conceito de montagem justamente porque perceberam o quanto ele provinha da práxis cinematográfica: cortar, colar, juntar, sobrepor etc. Eu destacaria aqui dois nomes para este entendimento. O primeiro deles é Dominique Chateau com seu texto L’invention du concept de montage: Lev Koulechov, théoricien du cinéma (2013), no qual faz uma genealogia do conceito e demonstra como a palavra foi carregada dessa experiência de fazer filmes e atravessada pelos valores da sociedade industrial tais como construção, engrenagem ou precisão de relojoeiro. Outro autor é François Albera que aponta as diferenças entre o discurso técnico-estético das questões críticas e teóricas. A proposta de Albera é obter um nível epistemográfico que englobe estes conceitos, regras de uso mas também as transformações a fim de enfatizar a condição de variabilidade e de possibilidade da montagem. Penso também que algumas pesquisadoras mulheres trouxeram mais recentemente a questão da dança, do corpo, ou melhor, da coreografia (estudo do movimento) como mote para entender a montagem tais como a australiana Karen Pearlman ou a francesa Teresa Faucon. No Brasil, creio que o aumento da produção de cinema associada à crescente oferta de cursos superiores de Cinema e Audiovisual nos anos 2000/10 fizeram renascer o interesse pela montagem como fonte de estudo. Por outro lado, a criação de programas de pós-graduação em Cinema e Audiovisual também colaborou para a investigação sobre o assunto no Brasil. Muitas montadoras e montadores inclusive procuram fazer estudos de pós-graduação e, não raro, pesquisam sobre o tema. É importante falar também do papel das associações de editores como a Edt. Associação de Profissionais de Edição Audiovisual que se organizam em torno das questões de classe mas também promovem encontros e discussões acerca de atualização tecnológica, de processos de trabalho e também sobre a montagem de filmes brasileiros. Por fim, eu destacaria a contribuição do Seminário Temático da Socine chamado “Montagem Audiovisual: Reflexões e Experiências”. Há quatro anos, o grupo vem apresentando o estado da pesquisa neste campo e levantando questionamentos pertinentes e atuais sobre a produção brasileira e estrangeira. Considero o cenário auspicioso e ainda veremos trabalhos muito interessantes em curto espaço de tempo. Da minha parte, pretendo avançar na pesquisa sobre montadores brasileiros da mesma forma sobre o que chamo de montagem de cartografias audiovisuais para dar conta dessa passagem do cinema para o museu, projeções, web e outros espaços.
P- Qual o papel das montadoras no cinema? No livro de Walter Murch, é assinalado que a única etapa da produção de um filme que historicamente empregou mais mulheres foi a edição, pois acreditava-se que seria um trabalho “manual”, e que mulheres teriam mais aptidão para realizá-lo. Você concorda com isso?
R- Creio que, no passado, se verificou a presença feminina não apenas na sala de montagem, mas também nos laboratórios cinematográficos no manuseio das películas. Realmente as tarefas exigiam destreza manual. Mas reforçaria a questão da destreza. Porque qualquer erro ou desatenção poderia comprometer a cadeia fílmica. A atividade era mecânica no sentido da repetição dos gestos, mas era de altíssima concentração e precisão já que se lidava com máquinas e com materiais delicados como o negativo. No caso da edição, havia, além dos cuidados técnicos, o caráter inventivo, mesmo que fosse dentro de padrões pré-estabelecidos no roteiro ou de regras de linguagem. A sala de montagem ou os ambientes dos laboratórios poderiam ser vistos também como locais mais seguros e controlados para a condição feminina da época, mais compatíveis com a dupla jornada de trabalho feminino e longe do burburinho do set de filmagem. Muitos comparam a montagem com a costura e recentemente vi um ensaio de Caterina Cucinotta (Universidade NOVA de Lisboa) e Jesús Ramé López (Universidad Rey Juan Carlos) em que traçam paralelos importantes entre as duas artes e a figura feminina. Eles concluem que as montadoras de cinema silencioso não eram creditadas nos filmes. Essas mulheres não foram consideradas artistas trabalhadoras em um universo masculino do início do cinema. Muitas, segundo os dois autores, eram recrutadas nos ateliês de costura para trabalhar com a montagem pela sua capacidade de “pensar com as mãos”. Eu aprecio essa ideia da capacidade desenvolvida pelas mulheres de pensar com as mãos.
Sobre o caso brasileiro, creio que a situação é bem mais complexa. Eu e a pesquisadora Natália Teles (UFJF) fizemos um levantamento junto à base de dados da Filmografia Brasileira da Cinemateca e encontramos o primeiro registro de uma mulher montadora somente em 1936. Era um filme de Raul Roulien intitulado O Grito da Mocidade. A montadora era Juanita Jacko, argentina casada com o fotógrafo americano Adam Jacko. Ficou uma temporada aqui no Brasil e depois foi morar na Venezuela. Na nossa pesquisa, aparece anos mais tarde o segundo nome feminino ligado à montagem no Brasil. Era Carla Civelli, italiana de nascimento. Ela figura como assistente de montagem de Alcebíades Monteiro no longa-metragem É com este que eu vou” (1948), dirigido por José Carlos Burle e produzido pela Atlântida. Se considerarmos o pioneirismo de Juanita foi um ponto fora da curva já que se distancia de 31 anos do primeiro nome masculino como montador no Brasil. Ou seja, só apareceram nomes de mulheres na equipe de montagem com alguma constância muito mais tarde. Entender a presença feminina nos bastidores do cinema brasileiro é um trabalho quase arqueológico porque são poucas as fontes de pesquisa e faltam dados para uma compreensão geral dos fatos. Muitas perguntas ficam no ar. Seria realmente Juanita Jacko a primeira montadora do cinema brasileiro? Ou o trabalho feminino era invisibilizado nos créditos dos filmes tal qual falam os dois autores citados acima? E se comparado a outros países, muitas montadoras começaram mais de uma década antes como Elisabeth Svilova, conhecida montadora dos filmes de Dziga Vertov. Outro aspecto marcante na filmografia brasileira é a presença de estrangeiras que debutam no cinema brasileiro. Por que as brasileiras não assinavam a montagem dos filmes? Hoje o cenário é bem diferente. Temos um bom número de montadoras brasileiras e com trabalhos relevantes na área. Entretanto tenho curiosidade de comparar a trajetória entre os dois perfis de montadores (feminino e masculino) atualmente e saber se a colocação profissional de ambos se dá de forma igualitária. Ambos começam e ascendem na carreira da mesma forma? Mas sem dúvida alguma a presença das mulheres montadoras é de extrema importância hoje para o cinema brasileiro.
P- Quais são os montadores e montadoras do cinema internacional e brasileiro que você colocaria em destaque?
R- Adotando um viés histórico, eu destacaria primeiramente os diretores-montadores tais como Eisenstein ou Griffith, responsáveis por importantes contribuições na montagem que até hoje repercutem no cinema e no audiovisual tais como a montagem intelectual e a montagem paralela, só aqui a título de bons exemplos dessa atuação. Ou então, no caso brasileiro, os realizadores Silvino Santos e Luiz de Barros, pioneiros na montagem aqui segundo o levantamento que fizemos no banco de dados da Filmografia Brasileira. Adiante mencionaria o trabalho de parcerias entre montadores e diretores como Elisabeth Svilova e Dziga Vertov; Thelma Schoonmaker e Martin Scorsese; Agnès Guillemot e Jean-Luc Godard ou até mesmo o casal Danielle Huillet e Jean-Marie Straub que chegavam a assinar juntos a realização dos filmes em reconhecimento pelo papel da montagem na criação cinematográfica. Aqui no Brasil poderíamos citar a cumplicidade de Nelson Pereira dos Santos com alguns montadores ao longo da sua carreira longeva tais como Rafael Justo Valverde, Severino Dadá e mais recentemente com Luelane Corrêa ou ainda Jordana Berg e Eduardo Coutinho. No caso de editores de TV, não tenho como deixar de apontar a presença de João Paulo de Carvalho sobre quem escrevi um capítulo do livro Som, Montagem e Fotografia: Colonialidades e Regionalismo. Foi um nome importante e responsável por uma linguagem mais jovem na teledramaturgia brasileira, encurtando os tempos dos planos e das histórias. Figura realmente reconhecida por esta contribuição. Na atualidade brasileira, temos alguns veteranos na ativa como Mair Tavares, Idê Lacreta e outros. Em 2019, faleceu outro nome importante da montagem brasileira, que foi Vânia Debs, que se projetou não apenas como uma excelente montadora, mas também como professora de montagem da USP, reafirmando o papel da academia como lugar de formação e de pensamento sobre a montagem. Depois temos uma geração de montadores importantes como Daniel Rezende (montador de Cidade de Deus) que foi indicado ao Oscar de melhor montagem, elogiado por Walter Murch e que despontou para uma carreira internacional e nacional. Há outros excelentes editores brasileiros e poderia aqui, para encerrar esta lista de nomes que é realmente infindável, destacar os trabalhos das pernambucanas Natara Ney e Karen Harley e das cariocas Joana Collier e Eva Randolph. Apenas para falar de como elas são montadoras sensíveis e que trazem uma marca autoral no trabalho de montagem. Ou seja, gestos de montagem reconhecíveis e com constância nos trabalhos que editam. Hoje, no entanto, há coletivos de montagem o que, de certa forma, poderá colocar em cheque esta perspectiva da autoralidade na montagem. Isso é uma tendência em filmes contemporâneos, com exemplo, a produção indígena brasileira. Mas também é uma aposta da própria indústria no sentido de promover a edição coletiva de forma remota. Isto quer dizer que vários montadores podem trabalhar em conjunto à distância ao mesmo tempo.
P- A montagem é basicamente uma expressão utilizada para o cinema, sendo mais recorrente a expressão edição para trabalhos audiovisuais, seja no streaming ou na televisão. Como você vê essa questão?
R- A palavra montagem provavelmente nos foi importada do francês que a utiliza exclusivamente para falar do trabalho de pós-produção de imagem e som. A edição vem do inglês e os anglófonos também costumam se referir a esta etapa da produção fílmica apenas por esta palavra. Aqui no Brasil adotamos os dois nomes e fazemos esta distinção associando a montagem ao cinema e a edição à TV ou a produtos para o streaming. Alguns entendem que a montagem é mais voltada para a junção dos planos, uma operação de corte e colagem dos fragmentos. Outros atribuem à edição a ideia de trabalhar a estrutura do produto. Então me parece muito delicada a nuance entre dois termos. Vale lembrar apenas que, aqui no Brasil os editores de TV, como era o caso do João Paulo de Carvalho, não operavam o equipamento, especialmente as ilhas de edição lineares eletrônicas. Eles ficava responsáveis por dirigir a montagem dos programas indicando onde seria o corte entre as imagens e zelando pelo todo do produto. Mas considero que o mais importante é ter sensibilidade e inventividade no momento de lidar com o material bruto buscando organizar de maneira a trabalhar a percepção, sensorialidade e cognição do espectador. Este é o grande desafio.
P – Por conta de um processo de produção cíclico, nos termos colocados por Paulo Emílio Salles Gomes, em Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, repleto de lacunas, paradas e recomeços, montadores/editores de imagem acabavam alternando-se entre televisão e cinema no Brasil para poder sobreviver. Como esse movimento influenciou o trabalho desses profissionais e de que forma essa alternância impactou o nosso cinema e a nossa ficção audiovisual?R- Creio que seja mesmo uma marca da nossa produção audiovisual desde muito tempo, mas tenho a impressão de que o cenário internacional vive a mesma experiência com a convergência das mídias. Porém, nos levantamentos que fiz sobre os montadores brasileiros, percebi que foi uma categoria profissional que desponta no Brasil nos anos 1940/1950 e, neste momento, temos dois nomes bastante relevantes pela trajetória de ambos no cinema brasileiro. O primeiro foi Rafael Justo Valverde e o segundo, Waldemar Noya. Hoje ilustres desconhecidos já que a nossa história do cinema valoriza os diretores e tende a apagar o corpo técnico. Valverde é um caso impressionante porque começou como mecânico dos estúdios da Atlântida e depois alçou vôos na pós-produção trabalhando com Moacyr Fenelon, Alex Viany e assinando a montagem de filmes importantíssimos como Rio 40 graus e Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, Assalto ao trem pagador, de Roberto Farias, Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, Toda nudez será castigada, de Arnaldo Jabor, entre outros. Noya igualmente atravessou a história do cinema brasileiro. Também trabalhou na Atlântida e montou diversos filmes ali e, no final da carreira, se dedicou à montagem de filmes de grande bilheteria como Rei Pelé e O fabuloso Fittipaldi. O que quero dizer com isso é que ali se inaugurou, a meu ver, a profissionalização da montagem, Valverde e Noya se dedicaram exclusivamente a esta área e diferentes dos antecessores que transitavam entre as funções técnicas do cinema (montagem, fotografia, direção de arte, direção). Com a chegada da TV, os editores eram formados lá dentro informalmente. O próprio João Paulo de Carvalho conta que foi chamado às pressas para substituir um colega sem ter conhecimento específico, mas que a cinefilia o ajudou bastante na hora de montar os programas. Entretanto, quando alguns cineastas, como Carlos Manga ou Roberto Farias vão para a TV, a porta se abre para os técnicos de cinema e eles trouxeram experiência e profissionalismo para a teledramaturgia. Nos anos 1990, por exemplo, esse trânsito foi ainda mais intenso porque houve um incremento da produção independente com a realização de videoclipes, institucionais, documentários para a TV enquanto o cinema vivia a crise da Embrafilme e ficamos sem fazer filmes. Quando houve a retomada do cinema brasileiro, ficou evidente este traço e muitos montadores provinham dessa circulação entre cinema, vídeo e TV. Atualmente a maioria dos montadores tem curso superior e muitos se formaram em Cinema e Audiovisual. A universidade passou a ser um celeiro de formação de onde eles saem com mais experiência para encarar o mercado de trabalho se comparado ao passado. Alguns deles inclusive trabalham no exterior como Daniel Rezende que montou A Árvore da Vida de Terrence Malick ou colaborações latino-americanas como Joana Collier (Gafas Amarillas do equatoriano Iván Mora Manzano) ou Karen Harley (Zama de Lucrecia Martel). Hoje os montadores se dividem entre cinema, TV, streaming e até formatos novos como o filme 360 graus. O montador JC Oliveira, formado em cinema na UFF e que foi meu orientando no PPGMC da UFRJ, trabalha editando regularmente para a TV, streaming e cinema. Depois de ter realizado o filme Sintonia Espacial em co-autoria com Zaga Martello em 360 graus como trabalho final para o mestrado profissional, ele foi convidado a montar outro filme neste formato chamado Musalem da diretora do Iêmne Mariam Al-Dhubani. Considero nossos montadores extremamente competentes e com grande colaboração artística para os nossos filmes e outras produções audiovisuais porque desenvolveram uma capacidade adaptativa podendo dar o melhor de si em cada trabalho.