Carolina de Oliveira Silva é Doutoranda do programa de pós-graduação em Multimeios da Unicamp, mestre em Comunicação Audiovisual pela Universidade Anhembi Morumbi, especialista em História da Arte pela Faculdade Paulista de Artes e bacharel em Rádio e TV pela Universidade Anhembi Morumbi. É professora da área de Comunicação e Artes, crítica de cinema e faz parte da equipe editorial da Zanzalá – Revista Brasileira de Estudos sobre Gêneros Cinematográficos e Audiovisuais. Ela é a autora do artigo A potência da fome no cinema de Ficção Científica brasileiro: uma análise de O anunciador – o homem das
tormentas (1970) que integra a coletânea Horror e Ficção Científica como Crítica Social, da coleção Temas.
- Os estudos sobre FC no cinema brasileiro nunca foram tema privilegiado de pesquisas. Quais os fatores que contribuíram para isso na sua opinião?
COS – Meus interesses de pesquisa sempre tenderam para assuntos que, muitas vezes, eram deixados de lado, e com a FC não foi diferente. Contudo, pensando em um contexto mais amplo de cinema de gênero, falar sobre essas vertentes ainda é entendido como uma espécie de fechamento, ou seja, o gênero como algo limitante e que impossibilitaria quebrar alguns paradigmas. A FC no cinema brasileiro, quando mencionada, ainda é motivo de muito olhares desconfiados, como se a gente estivesse falando de um animal desconhecido, estranho e que precisasse de provas da sua existência. O Alfredo Suppia fala sobre isso em sua tese de doutorado feita em 2007 – qual a ideia que temos do cinema de FC? Tecnologia, naves espaciais, armas à laser, alienígenas verdes e vários outros tropos que eu poderia citar aqui – isso tudo é o que a gente entende por FC no senso comum, assim, fica parecendo que uma história do gênero só pode ser feita a partir de uma superprodução e, claro, um grande orçamento! Mas o cinema brasileiro de FC – em partes – acaba desconstruindo um pouco isso, e essa é a parte maravilhosa de estudá-lo. Dessa maneira, se acreditou – e penso que ainda se acredita – que a FC só é possível desse jeito, e não tem como falar de cinema brasileiro sem citar as nossas grandes e persistentes dificuldades de produção, a princípio, parecem duas coisas que não poderiam conviver: Cinema Brasileiro e FC, que bicho é esse? Mas é aí que a gente se engana, essa “dificuldade” acaba surtindo outros efeitos, talvez de um cinema mais inventivo e que vai procurar por outras formas de narrar uma história de FC, ou que, pelo menos, flerte com essa ideia. Ressalvas com o cinema de gênero, a desconfiança com a possibilidade de fazer FC com pouco dinheiro e, infelizmente, os próprios recortes de pesquisa, que ainda tendem a privilegiar determinados cineastas – o que é um problema mais geral da própria academia e que não se restringe só à FC – são fatores que contribuem para a escassez da pesquisa em torno desse gênero. Mas ainda bem que esse cenário está mudando!
P – Além de O Anunciador ou o Homem das Tormentas, que você analisa em seu artigo, O homem do Sputnik (1959), Brasil Ano 2000 (1969) e Quem é Beta? (1973) são outros três exemplos de FC à brasileira. São tendências de abordagem bem distintas, em momentos diferentes. Qual delas prevalece no cinema brasileiro?
COS – De modo geral, costumamos identificar duas vertentes mais evidentes quando falamos de FC no cinema brasileiro, uma mais “lúdico-carnavalesca” e outra mais “sério-dramática”. Essa é uma distinção feita pelo Suppia que me agrada bastante, apesar de trabalhar com certa dicotomia. Dos três exemplos citados, O homem do Sputnik se encaixaria na primeira, já que usa a FC como um motivo para a comédia, diferente das outras duas e do próprio O Anunciador, que aliás, no meu texto, é possível de abordar a partir de um diálogo com a “Estética da Fome” de Glauber Rocha, o que vai envolver não só questões de produção, mas das próprias escolhas narrativas. Seguindo essa classificação mais simplória, eu diria que grande parte do que tenho visto, principalmente em curtas-metragens como Inabitável (2020) de Enock Carvalho e Matheus Farias e Ditadura Roxa (2020) de Matheus Moura, a vertente sério-dramática parece estar mais em evidência, todavia, isso também parte de um recorte que eu faço para a minha pesquisa, então não dá pra afirmar com toda certeza. Ao mesmo tempo que eu identifico essas produções, também é possível encontrar filmes como Lucicreide vai pra Marte (2022) de Rodrigo César, uma comédia que flerta com a ciência, a tecnologia e a viagem espacial – claramente um exemplo da primeira vertente, que tende, inclusive, a promover paródias de sagas já bem instituídas. Se recapitularmos a história da FC no cinema brasileiro, a mistura entre gêneros vai ser algo extremamente comum, às vezes a FC é utilizada só como motivo para a risada, em outros momentos, principalmente entre as década de 1960 e 1970 – no auge da ditadura – essas histórias já serão elaboradoras com uma vontade maior de crítica e até mesmo de denúncia. De qualquer maneira, independente da vertente que prevalece, é importante pensar que isso é algo totalmente histórico, ou seja, é preciso considerar a estética como intimamente ligada à política e, para além disso, pelo menos na minha forma de encarar tudo isso, seja para rir ou para calar, a FC no nosso cinema pode sempre ter algo interessante para dizer.
- As narrativas distópicas são recorrentes na FC brasileira e latino-americana, francesas e escandinavas. O discurso do colonizador bem-sucedido que vai conquistar o espaço sideral sob o manto da ordem e do progresso parece restrito às produções dos Estados Unidos. Como você vê essa questão? Qual a relação entre as políticas públicas e o cinema?
COS – Pensar essas relações entre colonizadores e colonizados é sempre algo delicado, mas é óbvio que não temos como fugir da nossa história – se as fabulações da FC são frutos de uma determinada sociedade, daquilo que ela almeja para o futuro ou daquilo que ela tem medo, é natural que algumas questões se evidenciem. Volto novamente ao senso comum da FC – infelizmente, muitos de nós crescemos vendo somente a FC mais “tradicional”, ou seja, a produção estadunidense, então acaba sendo “natural” nós internalizarmos o discurso do colonizador que chega em uma terra de selvagens para “ajudar” ou até mesmo salvar. Contudo, hoje já é mais do que sabido que, esses supostos selvagens somos nós mesmos! Essa consciência, apesar de lenta, tem chegado aos poucos e isso acaba refletindo em histórias de FC mais contemporâneas. Eu lembrei de um ótimo exemplo que não faz parte do cinema, mas da nossa literatura, o conto Ma-Horê da Raquel de Queiroz – que eu chego a comentar no artigo. A história, de maneira resumida, se passa em um planeta selvagem que recebe alguns estrangeiros astronautas, eles passam um tempo nesse planeta e são até que bem recebidos, contudo, a ideia é, obviamente, de exploração desse lugar. No final do conto, o “ selvagem” que ajuda esses cientistas, deixa-os morrer, já que o ar desse planeta é extremamente venenoso para as pessoas de fora, se não me engano a autora até brinca com isso, afinal, adianta mesmo você saber resolver todas as questões matemáticas do universo se uma simples temporada em um planeta desconhecido, “não-civilizado” pode te matar de forma tão primitiva, ou seja, impedi-lo de respirar? Eu acho essa reviravolta fantástica, é como se você invertesse os papeis, mas isso não significa, é claro, que não há ciência nesses espaços entendidos como selvagens, mas que existem outras formas de conhecimento que são igualmente possíveis. Essa mesma metáfora pode ajudar a responder a questão das política públicas – que elas passaram por um período de extrema precariedade e desmonte, isso não é novidade pra ninguém, mas é preciso olhar para as produções que foram feitas nesses momento de dificuldade, quanto de soluções criativas não existem ali? É óbvio que também não dá pra gente contar só com as “soluções criativas”, se não, o cenário de precariedade se romantiza demais, mas é preciso compreender todo o contexto, inclusive da nossa própria história com o gênero, que pouco acontece em torno das grandes produções. A tendência, acredito eu, é que as coisas passem a melhorar a partir de agora, principalmente com o entendimento reforçado de que o cinema não é só um passatempo, mas algo que versa sobre nossos problemas, medos e quiçá, sobre as nossas táticas de sobrevivência. Marte Um (2022) de Gabriel Martins, nosso representante no Oscar em 2023, é um exemplo disso, afinal, de forma bem objetiva ele é sobre ocupar espaços, ele diz que é possível a qualquer um poder fazer ciência, é possível a qualquer um poder sonhar. Não sei se poderíamos logo de cara chamá-lo de afrofuturista, mas com certeza, as imagens não elaboradas e apagadas de negras e negros – algo que o afrofuturismo, lá no início, procurou conceber, agora são devidamente produzidas, é uma história sendo escrita.
- Os filmes e séries brasileiros contemporâneos de FC parecem mais próximos de uma manifestação contracultural e especulativa, caso de “Tremor Iê”, “Branco Sai, Preto Fica”, e feministas, contestando o patriarcalismo, a xenofobia. Como vê isso?
COS – Particularmente, eu enxergo essas manifestações e contestações como o grande papel da FC científica na atualidade. Ela sempre foi um gênero que tentou pensar as mudanças, prever algumas situações, elaborar outras alternativas, e é justamente isso que me move na pesquisa, já que, até naquelas histórias que parecem dizer pouco ou quase nada ligado à uma espécie de crítica política ou social, é possível identificar algum discurso – algo que pode reforçar ou subverter determinada ideologia. Em filmes como Os Cosmonautas (1962) de Victor Lima, para além de um Brasil pensado como potência científica capaz de disputar com os EUA e a URSS, o que mais me chama atenção na história são as personagens femininas – a cientista (Alice), que é, na verdade, entendida como a secretária dos cientistas, e a alienígena (Krina Iris), que chega em missão de paz. É claro que a história não gira em torno delas, mas o que elas, como mulheres da ciência em plena década de 1960 no Brasil, podem dizer? Qual a colaboração dessas personagens para as história de FC quando pensadas na chave do gênero e do feminismo? Longe de mim querer tentar classificar esses filmes como ficções científicas feministas, até porque, tal classificação seria como limitar essas leituras, mas em uma produção, intimamente ligada à chanchada, que traz essas duas personagens como extremamente relevantes para o andamento da história, o que é possível intuir? Mesmo que elas acabem repetindo alguns estereótipos bastante problemáticos, isso significa que não devemos considerá-las? Eu acredito que exista potencial nessas narrativas, alguns mais evidentes e outros mais imbricados, mas há. Em Branco Sai, Preto Fica (2014) de Adirley Queirós a contestação a uma determinada forma de governo é evidente, assim como em “Tremor Iê” (de uma perspectiva mais feminista), nessas histórias, outras vozes estão tendo a oportunidade de falar e serem escutadas – eu acredito nesse papel da FC, para além das viagens para outros planetas, conquista de novos mundos, é preciso viajar para dentro da cabeça das pessoas. Essa sim é a nossa grande missão intergalática!
- Você se considera uma entusiasta da cultura geek? Qual é a sua relação com franquias como Star Wars?
COS – Meu interesse pela ficção científica nasce da pura curiosidade e não de algo que precede uma paixão. Eu diria que a pesquisa por um assunto irreverente e pouco estudado, foi o que me fez chegar de fato ao gênero. Minha proximidade com o horror, por exemplo, era muito maior que com a FC, apesar de essa ser uma dupla bastante corriqueira no cinema. Sinceramente, não me considero uma entusiasta da cultura geek, pelo menos não ao pé da letra, tendo em vista que ser uma entusiasta exige uma espécie de acompanhamento assíduo de tudo o que acontece, além de um conhecimento bastante aprofundado sobre determinados assuntos. O recorte da minha pesquisa, ao mesmo tempo que exige que eu veja muita coisa, também reivindica que eu faça determinadas escolhas – o que vou analisar, sobre o que vou escrever e qual será a abordagem utilizada. Como muitas e muitos da minha idade, eu cresci vendo filmes de franquias como Star Wars e Alien (o segundo já é uma história da qual eu me aproximo muito mais, tendo em vista meu estudo em torno das personagens femininas e, obviamente, e importância desses filmes no que se refere a representação das mulheres), até há pouco tempo, também acreditava que essas histórias eram a quinta-essência da ficção científica. Longe de mim querer estabelecer o que é mais ou menos ficção científica, mas a partir do momento em que eu tive a oportunidade de conhecer histórias que pouco se utilizavam dos efeitos especiais ou que problematizavam nosso mundo em torno de questões mais filosóficas, a minha relação com o gênero mudou. Eu procuro acompanhar sim as franquias mais famosas, mas confesso que tenho dificuldades com a quantidade de desdobramentos criados em torno das personagens, mundos e histórias, pra mim, é muito difícil acompanhar tudo de perto – eu tendo a preferir histórias mais enxutas. Contudo, acho importantíssimo que essas franquias existam e continuem existindo, independente das intenções do mercado cinematográfico, elas alcançam muita gente e têm cada vez mais abordado assuntos urgente que precisamos discutir: os papeis de gênero, raça, classe, sexualidade, religião, dentre outros marcadores de diferença, tão importantes para entendermos nossas complexidades.