Ainda estou aqui: resgate da memória brasileira

O filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, oficialmente indicado para concorrer ao Oscar, na categoria de filme estrangeiro, baseado em romance original do escritor Marcelo Rubens Paiva sobre a sua própria família, vem suscitando depoimentos emocionantes sobre nosso país, que vive um contexto de violência institucional crescente, com ameaças de golpe, o que vem nos lembrar de nosso passado recente, e de feridas nunca devidamente cicatrizadas.

O que faz com o filme cumpra essa função de forma tão contundente é a sua delicada reconstituição de época, realçada pela performance impecável de Fernanda Torres, como Eunice Paiva, e de Selton Mello, como Rubens. A narrativa se constrói a partir da visão de mundo de Eunice, e do olhar de uma mulher dedicada, de classe média, que vive feliz com o homem que amava e com sua família até ser confrontada por uma situação de horror e devastação. Do dia para noite, seu marido é retirado brutalmente de casa e com ele se vai também a perspectiva de continuidade uma vida familiar tranquila. Como explicar aos filhos essa mudança? O pai se foi, e eles passam a viver sob os olhares atentos e vigilantes dos agentes de segurança do governo.

Essa composição de personagem desenvolvida com maestria pelo roteiro e pela atriz evoca não somente nossas lembranças mais profundas dos “anos dourados”, mas também da vida de uma mulher culta, que era formada em Letras, mas caso-se aos 23 anos, sem nenhuma experiência de vida, que era uma dona de casa até ser afetada por uma tragédia, o desaparecimento de seu marido, e que se vê diante de um desafio pessoal extraordinário sob uma realidade dura e sem retorno. Como lidar com essa situação, e criar 5 filhos sozinha?
Para muitas mulheres como Eunice Paiva, fazer faculdade, ir à praia com os filhos, usar calças compridas, era ousadia suficiente para os padrões da época. A cena no banco, diante da certeza de que Rubens não iria mais voltar, representa à perfeição esse sentimento contraditório: o gerente explica para ela gentilmente que sem a “concordância do marido”, ela não poderia sacar dinheiro, regras comuns às esposas, mesmo que fossem casadas em comunhão universal de bens. E ela sem poder explicar que ele provavelmente estava morto, o que tornaria tudo ainda mais confuso. Eunice só obteve o atestado de óbito do marido em 1996, tendo de travar longa batalha para chegar a essa vitória, que ela comemora com ironia. Afinal, como explicar que um atestado de óbito possa ser considerado uma conquista? Em outra cena, ela pergunta ao amigo do marido porque nunca haviam compartilhado com as mulheres suas atividades de auxílio aos exilados e suas famílias. Ela pergunta se as outras esposas também não sabiam, e ele confirma. A ideia é que desta forma elas seriam protegidas e estariam a salvo, outra regra comum entre ativistas do período.

Embora o marido amoroso personificado por Selton Mello, que fica idêntico ao Rubens Paiva da vida real, até mesmo na forma de sorrir, esteja sempre presente, na memória e nas cenas em família, o filme de Salles é antes de tudo uma homenagem a uma mulher de carne e osso, que sonhou com um país forte e independente, ao som de Tomzé e de Juca Chaves, de Caetano Veloso e Chico Buarque, e que sentiu na pele seus sonhos se transformarem em pesadelo do dia para a noite. Só, ela percebe que vai ter se mudar a sua vida, e decide estudar Direito, tornando-se advogada e uma das maiores ativistas em prol da defesa das terras indígenas. Os coprotagonistas são os 5 filhos do casal, Vera (Valentina Herszage, Maria Manoella), a mais velha; Eliana (Luiza Kosovski, Eliana Paiva), Ana Lúcia (Bárbara Luz, Gabriela Carneiro da Cunha), Marcelo (Guilherme Silveira, Antonio Saboia) e Maria Beatriz (Cora Mora, Olívia Torres), elenco de apoio que cria o clima perfeito para as Fernandas, Torres na maior parte do filme, e Montenegro no desfecho, com Eunice sofrendo de Alzheimer.

Um pequeno detalhe do roteiro que incomoda é a história dos primeiros anos deslocar-se para São Paulo, 25 anos depois, com Marcelo, o único filho do casal, ladeado pelas irmãs, numa cadeira de rodas autografando seu romance de estreia, Feliz Ano Velho, um dos maiores sucessos da literatura brasileira, também vertido para o cinema por Robert Gervitz. Para quem sabe um pouco sobre a história de Marcelo, tudo se encaixa, mas de fora, soa um tanto desconcertante.

Como escritor, Marcelo, o menino que jogava pebolim com o pai nas horas de folga, sempre soube trabalhar o lado pessoal e aspectos trágicos de sua vida pessoal como lirismo e aquele sentimento de mundo ao qual se referia Carlos Drummond de Andrade, materializando no cotidiano a narrativa de resistência em que nos vimos inseridos a partir do golpe de 1964 e que nos identifica com Eunice e sua luta.

Essa visão humanizada, que coloca o sujeito como centro da ação política, e que está no livro, ganha ainda mais força e complexidade a partir da atuação comedida, sensível e elegante de Fernanda Torres. A atriz comentou em uma das entrevistas concedidas sobre o filme que a ideia inicial era colocar sua mãe, Fernanda Montenegro, em outros trechos além do final, quando ela assume a identidade de Eunice mais velha, próxima ao final de sua própria vida – ela morreu em decorrência de Alzheimer em 2018, aos 89 anos. Mas Fernanda, a mãe, sabiamente colocou que achava crucial para a personagem que ela seguisse pelo filme com a mesma atriz, e que isso traria mais densidade à trama. Vendo a atuação de Fernanda Torres, fisgando o espectador com seu olhar e sua resiliência, não há dúvidas. O desfecho com Fernanda Montenegro arremata esse brilhante desempenho.

Existe no momento uma torcida brasileira imensa para que ela seja indicada como melhor atriz no Oscar. Essa discussão é importante, mas soa totalmente irrelevante. Ela conquistou o coração do público, com uma bilheteria e críticas que raramente são destinadas a filmes com essa composição dramática e sobre um tema político. Quero que a senhora saiba que eu não concordo, diz a certa altura um policial no DOI-CODI para Eunice à saída de um interrogatório. A obra é nosso prêmio, ao resgatar uma narrativa que nos foi negada, e certamente não será esquecida, pois já entrou para a nossa história – foi assistida até o momento por 1,7 milhão de espectadores, bilheteria maior do que a de Central do Brasil, do mesmo Salles.

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