Quem for ao cinema para ver Chiara Mastroianni em Marcello Mio na esperança de encontrar algum filme ao estilo reality ou a vida como ela é, enquanto a bela e sofisticada filha de Marcelo Mastroianni e Catherine Deneuve desfila figurinos queer e esbanja talento – sim, ela tem, não é porque é nepo baby -, vai ficar um tanto frustrado. Para quem aprecia arte e bom gosto, além de diálogos inteligentes, é um petisco e tanto. Serve mais como entrada, a gente fica querendo ver mais, eis o problema. Chiara inventa um alter ego masculino que é o seu próprio pai, e explora as suas próprias feições que certamente lembram muito as de Mastroianni do que as da mãe, que por sua vez termina cúmplice nesta aventura pelas ruas de Paris.
Chiara vai matar as saudades do famoso pai revivendo os amores e manias paternas, como a de adotar cães de rua, e acaba em Roma na Fontana de Trezzi, performando ela mesma a icônica cena do pai com Anita Ekberg, em La Dolce Vita. Felliniana, talvez, ela canta num cabaré parisiente com voz afinada e ritsmo, e mata as saudades do pai de forma bastante criativa, reinterpretando o ator numa farsa não paródica, mas bastante teatral, como convém a uma família de artistas. Sim, Marcelo cantava, e muito mal, a filha canta melhor para sorte do telespectador. Em cena, além do show, ela faz uma recriação de participações de Marcelo em programas populares da TV italiana.
O filme nos engana o tempo todo, assim como no teatro as comédias de erros e absurdos -, porque onde se espera um documentário formal, se encontra uma dramatização de fatos ocorridos, e onde se espera ficção, surge um encontro real entre mãe e filha, mas sempre evitando sabiamente o modus operandi dos realities de tv, embora se fazendo valer deles. Isso é flagrante na cena em que a mãe, Catherine, propõe uma visita a um apartamento onde a família viveu – o casamento de Deneuve- Mastroianni foi breve -, e bate à porta do atual morador. Catherine se apresenta, pede para entrar em rápida visita, e o morador concorda com a inusitada proposta. Na saída, ela comenta com a filha que a decoração piorou, que o morador não tem gosto, mas foi muito simpático, ao que Chiara responde que pra ela tudo é fácil, afinal ela é Catherine Deneuve, uma lenda.
Não deve ter sido fácil para Chiara ser a filha de dois monstros do cinema, sendo ela mesma um tipo bastante singular de beleza, e ainda criar sua pópria persona artística. Ao se fazer valer dos contatos favorecidos pelos pais, mas ao mesmo tempo, enfrentando duras comparações, eu diria que Chiara Mastroianni consegue mostrar seus dons e ter personalidade própria na tela, forte e única, sem ter de negar a grandiosidade de ambos, e os laços de parentesco.
O autor e diretor desta proeza é Christophe Honoré, conhecido pela sua habilidade por transitar por temas sensíveis. O elenco reúne veteranos, astros e estrelas do cinema francês interpretando outras versões de si mesmos. A tarefa não é nada fácil para ambos, o autor e sua protagonista.
Honoré e Chiara se dão bem nesta empreitada, e expõem a intimidade glamurosa da atriz e produtora com a tranquilidade de quem nasceu nas coxias, e ao mesmo tempo se ser arrogante. Uma experiência fantástica pela virtuose de ambos, e pelo voyeurismo explícito de algumas passagens em que Chiara, vulgo Marcello, contracena com Nicole Garcia, ou com seu ex Benjamin Biolay, dentre outras peculiaridades deste filme-ensaio que é um evento. Estreia hoje no Reserva Cultural em São Paulo, e no Estação Net Botafogo.