O novo filme de Renata Pinheiro, Lispectorante, tem uma proposta das mais audaciosas – dialogar com a obra de Clarice Lispector como fonte de inspiração não somente artística, mas também urbana e social para discutir a função da arte nos dias de hoje. Para delinear essa proposta, Pinheiro coloca como protagonista a atriz Marcélia Cartaxo, no papel de Glória Hartman, uma artista plástica em crise, que decide visitar a tia em sua cidade natal, Recife, enquanto negocia com seu ex-marido o pagamento pela venda de suas obras. Por uma maravilhosa coincidência, vale lembrar que Cartaxo estreou no cinema como a jovem Macabéa de A Hora da Estrela (1985) e conquistou o Urso de Prata de melhor atriz em Berlim em 1986.
Enquanto isso não acontece, Glória passeia pelas ruas da cidade, e ao se deparar com a casa onde viveu a escritora brasileira de origem ucraniana, no bairro de Boa Vista, reduto da imigração judaica naquela cidade, começa a ter visões oníricas de pessoas extraterrenas, como Haya (Grace Passô em interpretação performática), que gerencia uma extinta banca de gibis que só existe agora no imaginário que habita a casa e o coração de Glória. A casa assobradada está em ruínas, como boa parte do centro histórico e cultural da capital pernambucana, e esse patrimônio simboliza sem dúvida as políticas do poder público e sua postura com relação a esse legado. No longa, aparece a escultura da escritora, que também se encontra bastante danificada e sem restauro, e fica na praça em frente à casa. Ao passar pela praça em um tour, o guia turístico menciona a escritora para pessoas que claramente desconhecem sua obra. Hartman passa por eles, buscando a banca de gibis e mais revelações.
Em uma das “visitas” que faz à casa, Glória conhece um artista de rua, Guitar (Pedro Wagner), bem mais novo do que a veterana atriz, e se apaixonam. As visões de Glória a partir da casa, que adquire vida própria, o namoro com Guitar, começam a transformar sua vida e lhe devolvem aos poucos a autoestima, despertando sua criatividade. Outro elemento importante é a relação de Glória-Marcélia com Clarice. A atriz paraibana já viveu a jovem Macabéa de A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral, e ganhou prêmio de melhor atriz em Berlim (1986), com sua tia e seu primo mesquinho e ambicioso vivido por Tavinho Teixeira, que também assina a preparação de elenco.
Uma frase de Clarice pontua o filme: “a salvação é pelo risco”, diz Glória em sua via-crúcis por este Recife lisérgico que transforma a tela em experimento de vida e arte. A cantora Karina Buhr é a dona de um brechó fantástico, com ares de sobrenatural, outro portal além da casa de Lispector, e que vai ajudar Glória a sair de uma dívida e a reconquistar seu lugar no mundo. Clara Pinheiro faz a hilária recepcionista do Hotel Central, outra referência histórica de Recife, estabelecimento que hospedou Carmem Miranda em sua passagem pela capital pernambucana. Gheuza, do Coletivo Anghu de teatro faz a amiga advogada de Glória.
Com essa estreia, que vai estar nos cinemas a partir de hoje, Pinheiro se consolida com obra singular, que vez por outra envereda pelo fantástico, caso de Açúcar e de Carro Rei, que ganhou Gramado em 2021. Sua estreia em longas veio com Amor, Plástico e Barulho, mas Renata já possuía curtas e outros trabalhos em parceria com Sergio Oliveira, que aqui divide o roteiro, além de sólida carreira como diretora de arte.
Na definição da diretora, “Glória representa a invisibilidade das mulheres maduras, sempre acompanhadas das impossibilidades de todas as ordens e que, mesmo assim, resistem e se rebelam”. O fantástico no filme transita entre o delicado realismo mágico que consagrou Como água para chocolate, mas aqui a fantasia é o sonho que possibilita seguir em frente e conquistar um lugar no mundo, uma posição real. Sonhar é um ato libertário, que pode transformar a sua vida, e a arte é a ferramenta para articular novos mundos. Não espere aplausos o tempo todo, pois como diz Guitar, muitas pessoas agridem, têm medo, maltratam os artistas.