Desconstruindo o passado, fincando o presente e construindo o futuro

Anne Quiangala

A emergência das discussões sobre justiça social, representação e representatividade na cultura pop gira em torno de dois tipos de exterioridades: o contexto sociocultural e o interesse de incorporação de novos públicos, o que é especialmente observável na história de mídias modernas como as Histórias em Quadrinhos e o Cinema. Acompanhando a retomada da centralidade dos temas sociais numa perspectiva “diversa”, uma reivindicação crítica, que demarca seu ponto de vista e interesse alicerçado em corpos sociais em desvantagem política é necessária e urgente. Em resposta a isso, na presente coleção, podemos observar a riqueza que essa avidez acrescenta ao rigoroso processo de acessar as camadas de significado que compõem os artefatos culturais analisados.

As obras audiovisuais estudadas em Afrofuturismo, xenofobia e gênero no cinema, por meio de um aporte interdisciplinar, explicitam como questões relacionadas à desigualdades profundas, inerentes ao mundo capitalista, impactam, não apenas no discurso delas, como na própria realização. Exemplo disso é o fato de que 2015 foi considerado o ano da mulher no cinema, mas em cerca de uma década filmes de super-heróis, apenas em 2017 estreou nos cinemas o primeiro longa-metragem baseado em personagem de quadrinhos da DC Comics, protagonizado por uma super-heroína – Mulher-Maravilha. Nessa esteira, apenas no ano seguinte, a Marvel entregou o primeiro filme protagonizado por um super-herói negro, no longa Pantera Negra (2018).

As violências de raça e gênero, que ainda norteiam os valores e práticas sociais, moldam a representação midiática, bem como os reiteram. Apesar dessa constatação, as discussões propostas na coletânea destrincham as camadas de entendimento e revelam a possibilidade de criação de novos futuros. É neste terreno ambivalente que analistas elaboram como a mídia é um modo prolífico para ilustrar teorias complexas, uma vez que ela confere ao público referências culturais vívidas. A riqueza de uma obra como essa, com discussões teóricas densas, que partem de obras populares, e aparentemente de entretenimento e imperialismo puro, é a possibilidade de criar uma ponte única com um público amplo, para além dos muros da universidade. E, quem sabe, impactar o nosso modo de produzir teoria no interior dos muros, mas fora das puristas torres de marfim.

A obra, organizada por Luiza Lusvarghi, se inicia com uma discussão potente em torno da importância representativa do personagem controverso Erik Killmonger, o primo diaspórico do wakandano, T’Challa, em Pantera Negra. Longe de se ater à dicotomia tradicionalmente associada às histórias de super-heróis, Tamara Lopes de Sousa propõe uma leitura que questiona a aparente estabilidade de Erik como vilão. Ela opta pela reflexão sobre a importância do personagem como um representante da experiência de negritude ancorada no legado da escravidão, não restrita a ela, mas no processo de busca por reparação histórica para o povo negro. O artigo de Sousa é interessante porque redimensiona o lugar do herói e do vilão baseada num aporte teórico negro, ao mesmo tempo, demarcando sua própria relação com a obra e a teoria.

Em seguida, é traçado o retrato da cientista Marie Curie, por meio de sua cinebiografia dirigida por Marjane Sartrapi, autora amplamente conhecida por sua autobiografia gráfica Persépolis (2000). Num estudo sistematizado pelo circuito da cultura, Lara Lima Satler realiza uma análise cultural de Radioactive (2019), apresentando Marie Curie em sua jornada, destacando os elementos culturais, perspectiva, abordagem da obra em diálogo com o aspecto formal. Os feitos extraordinários somados à luta pelo reconhecimento de suas contribuições científicas tornaram Curie uma figura inspiradora e heróica, a ponto de termos um trecho marcante em Persépolis que destaca o impacto da história da física: “Eu queria ser como a Marie Curie/ Queria morrer pela ciência”. 

Pantera Negra, o filme, também é objeto de análise do capítulo de autoria de Alan Rodrigues Soares e Ana Taís Martins. Neste estudo, a história do conceito de afrofuturismo é substrato para a discussão sobre os elementos afrofuturistas apropriados dialeticamente no filme dirigido por Ryan Coogler. O passado e o presente, como motores do futuro possível, são personificados nas figuras de T’Challa e Killmonger de modo complexo e preenchido de questionamentos caros à população negra diaspórica. Longe de ter uma proposição definitiva do que seria uma narrativa ideal, Soares e Martins discutem como o afrofuturismo contribui para a criação de um novo imaginário sobre negritude no futuro.

O capítulo posterior, de André Luiz de Albuquerque Azenha e Jamer Guterres de Mello, busca discutir o modo como a cinessérie O Morcego, primeiro material audiovisual estrelado pelo Batman, e exibido durante a Segunda Guerra Mundial, contribuiu para uma percepção racista dos japoneses. Tanto a construção visual como a narrativa em si faziam uso de clichês para popularizar o sentimento de hostilidade, naturalização do discurso de ódio com um objetivo supostamente patriótico. Azenha e Mello argumentam que, a destruição das subjetividades como desculpa para moldar um inimigo comum foi amplamente usada para justificar guerras, mas a instrumentalização desse discurso é uma poderosa ferramenta de controle social que a extrema-direita usa sempre que sua farsa começa a ruir perceptível em eventos recentes.

O último capítulo da coletânea traz uma análise do filme Capitã Marvel. Marina Vlacic não apenas fez uma pesquisa quantitativa, como contribuiu com a fortuna crítica da representação de super-heroínas no cinema. A personagem passa por um trauma recorrente na representação feminina: o relacionamento abusivo. A análise então toma os elementos constitutivos, marcando os rompimentos (como a preocupação de representar Carol Danvers sem os marcadores de gênero convencionais) e as continuidades (situações e imagens reiterativas de humilhação frente às figuras masculinas). A análise humaniza a heroína, ao focar no fato de que, nem mesmo as mulheres com poderes sobre humanos estão podem se envolver em relacionamentos abusivos. O fato de Danvers se libertar dessa relação dá um tom de redenção, de possibilidade de implosão do passado e criação do futuro, nas palavras dela: “mais alto, mais longe, mais rápido”.Em suma, esta coletânea é uma obra que reúne trajetórias distintas num mesmo campo minado, que é a sociedade capitalista, racista e sexista dobrada em si mesma como artefato midiático construído como recurso de manutenção do status quo. Por um lado, cada análise desvela o mecanismo das narrativas que tentam nos hipnotizar com promessas de inclusão; por outro, o ato em si de retirar o véu e destrinchar o funcionamento da narrativa-máquina, nos leva a imaginar novos motores e, quem sabe, até a nossa própria máquina (transmutadora de simbologias) do mundo.

E-book disponível: Amazon · Apple ·  Google Play · Kobo · Livraria Cultura · Martins Fontes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *