O filme A Substância, da diretora francesa Coralie Fargeat, divide opiniões e choca ora pela estética trash, quase experimental, ora pela violência estereotipada de suas personagens. E traz a veterana Demi Moore num papel que a expõe de forma corajosa, uma mulher madura que dedicou sua vida a lutar pela preservação de sua beleza, entregando-se a diversos tratamentos e cirurgias, algumas visíveis na tela, em cenas que não se preocupam em preservar a estrela. Sim, Elisabeth Sparkle, a personagem, também é atriz, tem um programa de ginástica fitness na TV, e acaba de ser demitida pelo seu inescrupuloso e sórdido chefe, Harvey (Dennis Quaid).
Coralie faz parte da nova onde feminista do horror, bastante expressiva na França, e estreou como diretora com Vingança (Revenge, 2017), um filme violento tachado como rape-revenge por certa parte da crítica e também do marketing, ansiosos por criar a sensação de novidade e rotular tendências, esvaziando seu potencial subversivo. Inspirada por trabalhos como esse, a pesquisadora australiana Barbara Creed, famosa pelo conceito da mulher monstruosa, criado ainda na década de 1990, volta ao tema em seu mais recente trabalho, o livro Return of the Monstrous-Feminine: Feminist New Wave (A volta do montruoso feminino: a nova onda feminista), lançado em 2022. O livro de Creed abre com a fala de outra diretora francesa, Julie Ducornau, e assinala a existência de filmes e séries autorais, feitos por diretoras e diretores, em diversas partes do mundo, que desafiam as convenções sociais. A monstruosidade, para mim, é sempre positiva. Trata-se de desmascarar todas as formas normativas da sociedade e da vida social, diz Julia Ducournau, diretora de Titane (2021).O conceito de monstro cunhado por Creed não diz respeito apenas à aparência, mas sim à posição desta mulher no mundo, e sua monstruosidade é vista como fator de subversão da ordem, mais do que um elemento canônico de filmes de horror.
O fenômeno não é novo, e vem numa escala ascendente desde a virada do milênio, e mescla horror e ficção científica, uma combinação comum no cinema. A alienígena devoradora de homens em Sob a pele (Under the skin, 2014), vivida por Scarlet Johansonn, a ciborgue psicopata como em ex-Machina Instinto Artificial (2014), vivida por Alicia Vikander, a garota holograma de Blade Runner 2049 (2017) interpretada por Ana de Armas, todas soam como prenúncios de uma tendência que vem para chocar pelo absurdo, exibindo femme fatales metonímicas e artificiais. Em A Substância, no entanto, foi bastante realçada pela crítica a semelhança com o filme a Morte lhe cai bem (Death becomes her, 1992), de Robert Zemeckis, pois o filme de Coralie seria uma crítica à sociedade de comsumo e à ditadura da estética, sobretudo em Hollywood. O fato da atriz principal ser uma espécie de ícone desse mercado, adepta de tratamentos tóxicos de beleza, só reforça essa teoria. Não é bem esse tom de comédia de costumes que prevalece aqui.
O filme, certamente, ganharia mais verossimilhança se a protagonista fosse uma dona de casa comum. Basta dar uma olhada nas casas e clínicas de estética para se dar conta de que o culto à juventude eterna é tanto uma doença quanto uma fonte de consumo rentável, portanto faz parte da indústria do entretenimento. Saber que milhares de mulheres certamente fariam, e fazem, uso de substâncias ilegais para manter as aparências, sem sequer consultar a bula, e morrem em decorrência dessa opção, talvez resultasse num olhar crítico sobre a baixa auto-estima feminina levada ao paroxismo pela sociedade de consumo. A decrepitude de Sparkle ao final, em que ela se transforma numa autêntica bruxa da Branca de Neve, enquanto Sue, sua jovem e perfeita réplica (?), personificada por Margareth Qualy – da minissérie Maid (2021), filha de Andy MdDowell -, a destrói aos chutes, é no mínimo constrangedora, e mesmo assim segue sendo vista como a única saída viável para a mulher que envelhece na sociedade contemporânea.
Essa mulher que não é mais aceita, e é condenada a uma espécie de suicídio lento, uma morte assistida, patrocinada pelas tecnologias de ponta, e é um espelho de muitas mulheres dessa mesma idade, e sua história nada tem de excepcional. Ao criar essa visão aparentemtente estereotipada de uma mulher de 50 anos, período em que a menopausa chega para a maioria, aposentando a mulher como reprodutora, o filme de Coralie faz uso político do instrumental da psicanálise: sua presença não é somente portadora de significado e sim produtora de significado. Sparkle não é somente vítima, é autora de sua destruição, optando conscientemente por criar uma outra mulher, um clone que se rebela, ainda que isso represente a sua finitude em vida. Essa mulher monstruosa não produz empatia, e sim repugnância. O horror vem aqui do conceito de abjeção, retomado de Julia Kristeva por Creed, e aplicado por Coralie como boa aluna. Pena que ao final ela hesite em levar às últimas consequências sua personagem, com o filme resvalando para o tom de paródia.
O filme estreou em Cannes 2024, e pode ser assistido ainda em alguns cinemas, e nas plataformas MUBI, Apple e Amazon Prime Video.